Artista fala sobre montagem, que lhe rendeu Prêmio Shell, feminismo e novos projetos

Fernanda Torres fala sobre espetáculo “A Casa dos Budas Ditosos”, que volta a BH nesta sexta, reiterando seu caráter feminista — Foto: Luciana Prezia/divulgação

A primeira vez em que Fernanda Torres leu “A Casa dos Budas Ditosos” (1999), de João Ubaldo Ribeiro, foi para “dizer não.” A atriz havia recebido o convite do diretor Domingos Oliveira para interpretar a personagem do escritor baiano nos palcos, mas já tinha outros compromissos e não poderia aceitar mais um.

“Mas quando fechei a última página, não consegui negar”, recorda-se. De fato, a história de Ubaldo tem um quê de irresistível. Como num fluxo de pensamento, a baiana sexagenária CLB – só as iniciais dela são reveladas – conta suas aventuras sexuais (por sinal, interessantíssimas) vividas ao longo dos anos.  

Fernanda, afinal, ficou hipnotizada pela escrita sedutora de Ubaldo e decidiu aceitar o papel. “Algo me atraiu, o ritmo, as histórias doidas do Ubaldo, que é um encantador de serpentes, além do conteúdo do texto, que fala de cem anos de sexualidade no Brasil”, denota.

De lá para cá, já se passaram mais de 20 anos de sucesso absoluto nos palcos: “A Casa dos Budas Ditosos” rendeu a Fernanda um prêmio Shell, e mais de dois milhões de pessoas já foram assisti-la. O espetáculo volta a Belo Horizonte, nesta sexta-feira (3), em curta temporada até domingo (5), com ingressos praticamente esgotados. 

Tanto tempo em cena trouxe não só arrojamento dramatúrgico ao texto, como deu a Fernanda a possibilidade de crescer artisticamente. “É como um músico, acho, que volta a tocar uma partitura, é inesgotável. E o tempo me fez ter domínio sobre o texto, sobre as viradas, as pausas, eu não entro mais nervosa em cena, é maravilhoso”, indica a atriz, que alternou a montagem com outros tantos trabalhos, tais quais a hilariante “Tapas e Beijos” (2011-2015), o premiado “Saneamento Básico, o Filme” (2007) e o romance “Fim” (2013).

A adaptação do livro para o teatro foi como lapidar uma pedra preciosa. “É uma joia”, determina Fernanda. Ela e Domingos cortaram juntos algumas falas, mas a responsabilidade de trazer um “romantismo não tão claro no livro” foi dele.

“‘Vamos levar para a cena as grandes paixões da vida dela, tudo mais é dispensável’, ele disse. E assim fizemos. O que ajustei, já em cena, é muito pouco, alguns pequenos trechos, pequeníssimos, coisa de uma frase, um parágrafo, no máximo, que eu achava longo, nada além disso”, conta. Na verdade, o que a artista mais modificou foi o seu ritmo interno. “Hoje, tenho um domínio claro dele, não espero reação imediata do público, começo com calma, sem nervosismo, esse amadurecimento foi a maior mudança”, esclarece.

Fernanda continua a se surpreender “com a loucura do Ubaldo e com a sensibilidade do Domingos”, e em cena se sente ainda “estar na companhia deles de novo” – João Ubaldo Ribeiro morreu em 2014, e, Domingos Oliveira, em 2019.

“Outro fato interessante também, e que mantém ‘Os Budas’ vivo, é que tinha gente que nem havia nascido, quando comecei, gente que era criança, virgem, que ouvia falar da peça e não podia ver. O público cresceu, se renovou, não para de vir, e isso mantém a peça viva”, assevera.

‘Teatro sempre foi um matriarcado poderoso no Brasil’

“A Casa dos Budas Ditosos”, de João Ubaldo Ribeiro, é libertária em diversos aspectos, especialmente no feminista, uma vez que uma mulher expõe, em primeira pessoa, a sua sexualidade em uma época evidentemente moralista.

“Como disse, ‘Os Budas’ trata um século de sexualidade no Brasil. Ele fala da experiência da geração do Ubaldo, que nasceu num Brasil arcaico, passou pela revolução de costumes dos anos 1970 e continuou ativa na terceira idade. A CLB termina a vida fechando um contrato com um garoto, misto de amante e filho, um contrato pragmático, bem aos modos atuais. Ela se diz uma feminista esclarecida progressista, um homem fêmea. É o Ubaldo de saia”, considera Fernanda Torres, que destaca ser impossível “não ser feminista”, principalmente em um país onde quatro mulheres são assassinadas por dia.

O feminismo como tema nunca foi debatido na casa de Fernanda, porque “ele já estava dado.” “Minha mãe trabalhou a vida inteira, e meu pai sempre aceitou a total liberdade dela em cena. Além disso, o teatro sempre foi um matriarcado poderoso no Brasil, com Bibi, Marília, Dulcina, todas produtoras, à frente de suas companhias. Então, eu cresci sem pensar nisso. A última onda feminista, a mais recente, me surpreendeu, eu não pensava muito no feminismo, depois, entendi que havia muito o que mexer, mudar, em termos de salário, de creches, de direitos, de violência”, aponta a artista.

Para ela, é natural que o movimento tenha “um quê de radicalismo.” “Para caminhar, o mundo precisa de certa militância. Quando comecei, o cinema ainda tinha muita influência da Pornochanchada, a única indústria de áudio visual que passou ilesa pela perseguição da censura, durante a ditadura militar. A Pornochanchada vingou como indústria e influenciou todo o cinema. Aparecer nua era quase obrigatório, mesmo em filmes cabeça. Eu cresci no fim disso. Havia muita incongruência, mulheres arrojadas, libertárias, que posavam nuas para a ‘Playboy’, como se posar pelada numa revista machista fosse prova de liberdade, de poder sobre o próprio corpo. O machismo ainda reinava absoluto. Hoje, acho que isso mudou de forma significativa, houve avanços”, elabora.

Personagem vai para o cinema 

Fernanda Torres, atualmente com 58 anos, interpreta uma mulher dez anos mais velha. Quando idade da personagem, 68 anos, a atriz pretende levá-la para o cinema. “Tive uma ideia, eu e o Domingos, conversamos, combinamos, e é ela que quero filmar”, adianta. No entanto, a atriz prefere não se demorar no assunto. “Não gosto de falar dos projetos antes de fazê-los, esvazia”, explica-se.

Até chegar lá, muita coisa dá de vir. Autora de “Fim”, Fernanda conta que foi “maravilhoso” acompanhar a adaptação para série, que estreou no Globoplay em outubro passado. Ela observa, a propósito, as semelhanças entre a sua obra e o espetáculo “O ‘Fim’ tem muito a ver com ‘Os Budas’. Acho que aprendi a escrever introjetando as pausas, os pontos, as vírgulas do Ubaldo”, diz.

“E o ‘Fim’ é sobre a geração dele e do Domingos, mas não de artistas, como os dois, e sim, de machos médios de Copacabana. Foi maravilhoso adaptar, reescrever, transformar pensamento interior em diálogo. Depois, acompanhar as filmagens, com a Daniela Thomas e o Andrucha Waddington, com aquele elenco de ouro. Foi maravilhoso. O livro é mais cínico, menos romântico do que a adaptação. O meio muda o caráter da obra.  Eu achava que o ‘Fim’ tinha um potencial de folhetim, foi o que busquei, de tragédia, do atropelo da revolução de costumes na última geração de machismo declarado”, pensa.

Quanto a publicação de um novo livro, não há planos para o momento, mas Fernanda revela que escreveu uma série e um roteiro de cinema, ainda “em prospecção” e que continua a escrever suas colunas na “Folha.” Fato é que ela não se cansa se de aventurar.

“Sempre tenho [projetos], sempre rodei, primeiro alternava teatro, TV e cinema. Depois escrever entrou nessa roda, e outras tantas coisas, crochê, desenho… eu apresentei um podcast chamado ‘A Playlist da Minha Vida’, na plataforma Deezer, quem quiser pode ir lá conferir, não precisa se afiliar, foi das coisas que mais amei fazer. Entrevistei cientistas, músicos, atores, escritores, diz aí, tendo como base as músicas que marcaram a vida deles. São conversas preciosas. Vale a pena conferir, é um grande programa para ouvir numa viagem, num engarrafamento”, convida. 

SERVIÇO

Espetáculo “A Casa dos Budas Ditosos”
Quando. Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 18h
Onde. Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, centro)
Quanto. R$ 60 a R$ 280 (ingressos podem ser comprados aqui)

Fonte: O Tempo