Compositor mineiro abre parceria com a poeta Manuela Costa, homenageia o pai e realiza duetos com Fernanda Takai em duas faixas
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Lô Borges, 72, vive um paradoxo. Ciente de que “o tempo é uma abstração da mente”, ele precisa lidar com o fato de que “o dia só tem 24 horas”. “Sou um ser humano desses que toma café da manhã, almoça, janta, e também precisa dormir”. A fala justifica a diminuição no ritmo de shows nos últimos anos, quando Lô ficou dedicado à composição. Desde 2019, ele colocou na praça, ininterruptamente, seis álbuns.
O mais recente, “Tobogã”, acaba de ser lançado, e traz, na faixa-título, não só o mesmo nome do livro de memórias escrito por seu pai, Salomão Borges, em 1987, mas também o ensinamento filosófico que Lô adota como mantra: “o tempo é uma abstração da mente”. “Meu pai era muito louco, e vivia dizendo essas coisas!”, recorda o compositor.
A frase foi pinçada pela letrista Manuela Costa, que recheou a canção de citações do patriarca da família Borges, conhecido por abrir as portas de sua casa, no bairro de Santa Tereza, para uma tradicional “romaria dos fãs do Clube da Esquina”. Outro hábito passou a ser o de presentear esses visitantes com exemplares de seu livro de memórias. Foi dessa maneira que, em 2003, Manuela tomou contato com a obra literária, e se encontrou, pela primeira vez, com Lô.
Fascínio
Ironicamente, duas décadas mais tarde, eles se tornaram parceiros musicais à distância, repetindo um modo de trabalho que se tornou comum para Lô ultimamente. Foi assim com Nelson Angelo, Makely Ka, Márcio Borges, Patrícia Maês, e César Maurício, os letristas de seus álbuns anteriores.
“Para mim, não foi nenhum desafio, a diferença é que eu conhecia os outros parceiros profundamente, ao contrário da Manuela”, sustenta Lô. Ele admite que se surpreendeu com a desenvoltura da parceira, que nunca tinha feito letra de música, mas que, pelos poemas recebidos, sempre considerou a escrita de Manuela, “inusitada, original”, o que o atraiu de cara.
Um exemplo aparece na própria música “Tobogã”, com o verso que cita Yoko Ono e John Lennon, numa conversa sobre “o segredo da vida”. “Sou beatlemaníaco desde os anos 1960, e a Manuela desde os anos 1990, o que prova que a música dos Beatles é atemporal, e o que o tempo é uma abstração da mente”, reforça Lô, que atribui a febre de composição atual a um “fascínio pelo desconhecido”…
Encontros
“Gosto de criar coisas que nunca fiz”, afirma o músico. A agilidade para criar, segundo ele, foi adquirida na marra, ao assinar, “numa irresponsabilidade juvenil”, contrato com uma grande gravadora para lançar o seu primeiro disco solo, em 1972, no mesmo ano do emblemático “Clube da Esquina”, dividido com Milton Nascimento, e que ficou conhecido como “Disco do Tênis”, graças à imagem da capa, fotografada por Cafi.
Aliás, o acaso tratou de conectar essas histórias, ao deixar cair nas mãos de Rodrigo Brasil, responsável pela arte gráfica do álbum “Tobogã”, um retrato de Lô feito na década de 1980, justamente por Cafi. “Pela camisa que estou usando, a foto é da época do ‘Nuvem Cigana’”, garante, em referência ao álbum lançado por ele, em 1982.
“O Cafi me fotografou no começo da minha carreira inteira, então essa foto virou uma linda homenagem!”, completa Lô. Outra presença afetiva em “Tobogã” é a de Fernanda Takai, que comparece na faixa-título e em “Amor Real”. “Sou muito fã da Fernanda Takai, gosto do trabalho dela no Pato Fu, na carreira solo, de tudo que ela faz”, exalta. Lô descreve como “generosa” a atitude da cantora, que, em 2011, ao acompanhá-lo em estúdio para gravar uma música, decidiu colocar a voz em quatro composições de Lô.
“Mostrei as músicas para ela na hora, e a Fernanda saiu cantando como se já conhecesse tudo”, relembra. Ele coloca na conta da amiga o mérito da “configuração” apresentada em “Tobogã”. “A Fernanda me ensinou muita coisa sobre como cantar em dueto, toda ideia do relacionamento das vozes que aparece ali veio dela”, enaltece Lô.
Livre-arbítrio
Nadando contra uma corrente hegemônica na indústria cultural, que tem privilegiado o lançamento de singles dispersos nas plataformas digitais, Lô segue apostando na ideia de álbum. “Tobogã”, como os vinis de outrora, oferece 12 inéditas. “Tem uma coisa que se chama livre-arbítrio, cada um faz da maneira que quiser. Tem pessoas que lançam três músicas, uma, eu estou nessa de dez, doze, todo ano. É uma coisa pessoal minha, respeito quem faz diferente e não tenho nenhuma pretensão de ser o recordista de álbuns na sequência”, declara.
A decisão de compartilhar as canções, segundo ele, é “para dar vazão” ao impulso criativo. “Se fosse difícil fazer músicas, eu não faria, mas eu tenho facilidade para compor, desenvolvi esse dom”, diz. Tanto que, ao finalizar a primeira composição com o parceiro da hora, ele costuma emendar: “Bora fazer mais nove!”, diverte-se. Lô conta que compôs tão compulsivamente nos últimos tempos que poderia ter lançado dois discos por ano. “Mas eu não quero confundir nem a minha cabeça, nem a do público, e muito menos a da gravadora que é parceira na divulgação do trabalho”, sublinha.
Ele revela a intenção de, num álbum vindouro, assinar melodia e letra de todas as composições, ao contrário dos últimos lançamentos, em que sempre contou com parceiros. “Tenho umas dez letras engavetadas, porque também gosto muito de escrever. Mas, na minha missão de compor um disco atrás do outro, terceirizei as letras, porque não me sobra tempo”, diz.
Pé na estrada e ouvido aberto para as novas gerações
Lô Borges fez um combinado com ele próprio. “Não compor em 2024”, diz, depois de cinco anos de composições diárias. “Estava tão mergulhado em compor, que tinha até me esquecido do prazer dos shows”, confirma ele, que voltou a atender essa demanda do público, da banda e da sua produção. “Todo mundo quer que eu esteja com o pé na estrada”, afirma. Tendo que ouvir, principalmente, o que estava compondo, Lô também acabou negligenciando a audição de novos talentos da música brasileira.
“Sempre recebo de amigos várias indicações de pessoas da nova geração, que, infelizmente, tenho escutado menos do que gostaria”, compartilha. Apesar disso, o que chegou até ele agradou ao gosto de Lô. “A música brasileira vai muito bem, obrigado. Claro que existem coisas que são ‘lixo’ e viram moda, mas aí já é outra questão. Tenho orgulho de ser um compositor brasileiro”, finaliza Lô Borges, que segue orgulhando seus pares.
Fonte: O Tempo