‘Luz e neblina’, livremente inspirado em ‘Noites de Cabíria’, terá apresentação única e gratuita nesta quarta-feira (3/7)
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Em uma Itália devastada pela Segunda Guerra Mundial e que ainda tentava se livrar do infausto legado do fascismo, encarnado sobretudo pelo ex-duce Benito Mussolini, o cineasta Federico Fellini ousou fazer de “Noites de Cabíria” (1957) um filme sobre a esperança. Tema que, quase 70 anos depois, volta a nortear “Luz e Neblina”, um espetáculo teatral do Grupo Quatroloscinco, com dramaturgia de Germano Melo e direção de Ricardo Alves Jr., que, investido de elementos do cinema, se inspira livremente neste clássico do neorrealista – movimento caracterizado, entre outros elementos, por retratar a classe trabalhadora no pós-guerra.
A montagem, protagonizada por Rejane Faria, que contracena com Ítalo Laureano, Assis Benevenuto e Marcos Coletta, será apresentada uma única vez, precisamente nesta quarta-feira (3), no Grande Teatro Cemig do Palácio das Artes, marcando o encerramento da mostra “Retrospectiva Fellini”, dedicada à obra do diretor italiano, que, em junho, foi realizada no Cine Humberto Mauro.
“Foi uma honra receber o convite para este trabalho”, reconhece Rejane, – ainda que admita, diante da proposta, ter sentido o peso da responsabilidade. “Apesar do prazo para trabalhar essa montagem fosse curto – cerca de dois meses e meio –, tivemos grande interesse e estímulo, e conseguimos reunir uma equipe muito forte. Um conjunto de fatores que tornou tudo possível”, examina Rejane, fazendo elogios ao diretor, ao dramaturgo e a seus colegas do Quatroloscinco, além de lembrar que o grupo vem, nos últimos dias, de uma maratona de ensaios diários.
Esta, aliás, será a primeira vez que a companhia de teatro se apresenta no principal palco do Palácio das Artes, um dos mais imponentes templos da cultura do Estado. “É um espaço que a gente não almejava, porque sempre fizemos peças mais intimistas, para plateias menores. Desta vez, no entanto, estaremos em um teatro com palco gigantesco, com uma série de recursos incríveis, como elevadores, e potentes sistemas de som e iluminação. Além, claro, da grande capacidade de público (são 1.705 lugares). Tem sido uma experiência muito rica, que estamos aproveitando ao máximo”, anima-se a atriz, que assinala ter se sentido igualmente desafiada e animada diante da proposta de levar ao palco um espetáculo híbrido, com elementos do cinema e do teatro.
“Na verdade, já tivemos uma experiência assim com o espetáculo ‘Tragédia’ (2019), que também foi dirigido pelo Ricardo (Alves Jr.). Era uma montagem menor, mas que nos deu estofo para encarar com mais tranquilidade esse desafio de agora – que é, sem dúvida, maior, trazendo uma divisão menos demarcada entre o que é característico de uma linguagem ou de outra”, situa.
Trabalhando contra o tempo
E é com igual sentimento de orgulho e responsabilidade que o dramaturgo Germano Melo lembra ter sido convidado por Ricardo Alves Jr. para fazer a dramaturgia da peça. “A ideia, desde o início, era fazer um espetáculo que trabalhasse com uma linguagem híbrida”, recorda, inteirando que, quando recebeu a proposta, que aceitou de pronto, o diretor já havia escolhido realizar uma livre adaptação de “Noites de Cabíria”. “Por coincidência, é um filme que já vi muitas vezes e que considero um dos mais bonitos do Fellini”, assinala.
O dramaturgo diz ter começado a trabalhar o texto no primeiro semestre deste ano, quando estava no Rio de Janeiro. “Fiquei dois meses lá, quando escrevi a peça. Quando voltei para BH, me dediquei mais a fazer revisões e adequações”, diz, classificando o processo como “muito orgânico”. “Fiquei um bom tempo trabalhando sozinho até que, no último momento, entramos para a sala de ensaio e fizemos os ajustes e cortes finais, vislumbrando a composição da cena, pensando na embocadura cênica – ou seja, em como as falas soam na boca dos atores”, detalha.
“Todo esse percurso foi muito feliz. Primeiro pela proposta, segundo por ser um grupo com o qual eu tinha muito desejo de trabalhar. Gosto de como o trabalho deles tem uma forte assinatura autoral”, elogia Germano, que, com ampla experiência como ator, costuma pensar o texto dramatúrgico já na voz do elenco que irá interpretá-lo. “Escrevi, portanto, pensando muito nesses atores, e achei muito apropriado e inspirador idealizar uma Cabíria para ser vivida pela Rejane”, pontua.
Gostinho de quero mais
Germano Melo pondera que, mesmo inserida no contexto de uma mostra que mergulha na filmografia de Frederico Fellini, a livre adaptação teatral funciona de forma independente do filme, de maneira que o público terá uma experiência completa ao assistir ao espetáculo, mesmo sem ter assistido ao longa ou estar habituado ao universo – muitas vezes onírico – do diretor italiano.
“São produções independentes, que funcionam muito bem sozinhas. Então, quem não viu o filme, pode ver a peça que vai entender tudo. E quem já viu, terá a experiência de estar diante de outra interpretação daquela história”, assinala o dramaturgo, acrescentando “Luz e Neblina” pode, inclusive, funcionar como um chamariz para o público conhecer o longa “Noites de Cabíria”, e vice-versa.
Por fim, mesmo reconhecendo ser inerente ao teatro a característica do efêmero, reforçada pelo fato de a peça contar com uma apresentação única, Germano admite que a apresentação deve deixar um gostinho de quero mais.
Rejane Faria concorda. “Neste momento, é importante ser desta forma, porque todos temos nossos compromissos. Mas existe, sim, a expectativa de que a gente volte a montar esse espetáculo”, admite. “Mas isso depende de uma série de questões, inclusive, de como vai ser amanhã, de como o público vai reagir, de como vamos nos sentir em cena”, observa ela que, um dia antes da estreia, garante estar feliz, se divertindo e até emocionada – o que não deixa de ser um bom presságio para um eventual retorno da montagem.
A esperança como norte
Para construir a dramaturgia de “Luz e Neblina”, Germano Melo explica ter se inspirado no que chama de espírito do filme – que, para ele, faz uma tradução de um conflito entre uma personagem esperançosa e até inocente e uma sociedade despedaçada e odiosa. “A Cabíria é uma flor de esperança que não se encaixa ao mesmo tempo que é tão necessária em um mundo desencantado. Não por outro motivo, nós, como público, conseguimos nos conectar com essa personagem”, reflete.
Esse ethos esperançoso defendido pelo dramaturgo está alinhado com a perspectiva que Rejane Faria vislumbra e propõe para a personagem. A atriz, aliás, é só elogios à atuação de Giulietta Masina no premiado longa de Frederico Fellini. “Eu fico, assim, impressionada com a força e leveza que ela empresta à personagem. É uma interpretação muito inspiradora e um papel muito esperançoso”, comenta sobre Cabíria, uma italiana que se prostitui por necessidade e, embora viva diversos dissabores, sendo vítima de exploração e violências, mantém viva sua esperança por dias melhores e sua capacidade de sonhar.
“Trago muito disso para a minha Cabíria. Ela também vive diversas desilusões, mas, mesmo assim, não deixa de, o tempo inteiro, estar observando quem pode estar com ela nessa busca por uma vida melhor”, examina. Para ela, a questão fica ainda mais em evidência no contexto de um mundo pautado pelo imediatista – “em que tudo se desfaz tão rapidamente”, diz. “Em meio a essa lógica, ela se insurge, revisitando um jeito de olhar o mundo que até conhecemos, mas que perdemos em algum momento”, provoca.
Paralelos
Embora reconheça que a distância temporal imponha um contexto diverso entre o filme, de 1957, e a peça, que estreia quase 70 anos depois, Germano Melo vê paralelos entre as realidades de então e o momento político e social atual. “Se, naquela época, se vivia o pós-Guerra e os impactos da ascensão de regimes fascistas, agora, voltamos a atravessar um momento difícil, com a extrema-direita voltando a emergir diante da decadência do sistema capitalista. Se o longa veio no rastro de destruição e desesperança dos conflitos globais, agora voltamos a conviver com notícias de guerras e lidamos com as consequências da crise climática”, compara.
É diante desse horizonte de incerteza, que coloca não só o sentimento de humanidade como a própria civilização em xeque, que o dramaturgo imaginou a personagem. “Ela surge como essa fagulha de esperança e nos provoca, nos fazendo pensar se ainda existe bondade entre nós”, indica ele, que arremata: “Talvez, aquele mundo que o Fellini mostrava no filme esteja, hoje, até mais aceleradamente doente. E a Cabíria, com seu próprio ritmo, surge se opondo a essa lógica, surge como expressão de nossa condição mais humana, nos lembrando que só um olhar de esperança nos permitirá continuar lutando por um mundo melhor”.
SERVIÇO:
O quê. Espetáculo “Luz e Neblina” com o grupo Quatroloscinco, dramaturgia de Germano Melo e direção de Ricardo Alves Jr. Obra livremente inspirada em “Noites de Cabíria”, de Frederico Fellini.
Quando. Nesta quarta-feira (3), às 20h
Onde. Grande Teatro Cemig do Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro)
Quanto. Entrada gratuita, com retirada de ingressos a partir de 12h desta quarta, exclusivamente na bilheteria local. Será disponibilizado apenas um par de ingressos por pessoa, sem lugar marcado.
Fonte: O Tempo